Atitude

30 de abril de 2010

Pisou na escola pela primeira vez ao 33 anos. Muda, filha de boias-frias que se mudaram para São Paulo em busca de uma vida melhor, nunca havia tido a oportunidade de estudar, nem o incentivo, de maneira que também não sentia a necessidade de conhecer as letras, as palavras. Os números conhecia, havia lidado com eles a vida toda: tantos alqueires de terra, a hora do almoço, os centavos de cruzeiro no fim de cada dia.
Aos 23 anos, cansada daquela vida, subiu na boleia de um caminhão e deixou os pais. Acabou por se casar com o caminhoneiro um ano depois.
Se comunicavam como era possível, quase sempre com olhares e sinais, mas, após alguns anos, como acontece com a maioria dos casais, a comunicação foi ficando difícil. Foi quando decidiu entrar pra escola. Colocou na cabeça que, se soubesse escrever teria a chance de dizer o que precisava para salvar o casamento.
Foram dois anos de muito esforço, aprendendo as letras, as estruturas da língua.
Um dia, sentindo-se preparada para bater de frente com o marido caso fosse necessário, pegou um papel e escreveu com letras infantis: "Você não mora sozinho. Abaixe a merda do assento da privada, não jogue as cuecas no chão e me procure na cama. Sou muda, não cega ou frígida."
Foram felizes para sempre.

Sobre o dia em que o mundo acabou

19 de abril de 2010

Dirigia tranquilamente na Marginal Tie...não, peraí, vamos deixar esse texto mais verídico.
Estava há horas parado tranquilamente no familiar congestionamento das seis horas da tarde na Marginal Tietê, vidros fechados, blindados, retrovisor direito virado para dentro pra evitar que fosse arrancado pelos motoqueiros, como tinha acontecido com o esquerdo, quando gritos mais altos do que as buzinas o tiraram do transe gerado pela música que tocava no rádio. Olhou pra frente e viu as pessoas saindo do carro, olhando pra cima e correndo pra todas as direções.
Primeiro achou que fosse um arrastão, mas então viu que ninguém tentava roubar os carros que estavam sendo abandonados.
Abriu a porta, olhou pra cima e quase caiu duro pra trás.
O céu estava cor-de-rosa, bem diferente da típica e natural cor vermelha do céu noturno paulistano.
Um raio azul, seguido de um trovão ensurdecedor, cortou o céu, dando início a uma chuva incessante, não de água ou de fogo, como descrito no Apocalipse, mas de canivetes.
Era, de fato, o fim do mundo.
Entrou de novo no carro, em partes por não saber o que fazer, em partes para fugir dos canivetes.
O grande momento, tão profetizado, havia chegado. E ele estava ali, no trânsito. Não sabia quanto tempo de vida ainda tinha e decidiu pensar no que fazer naquele momento tão decisivo.
Pegou o celular pra ligar para esposa, para a sogra, para o cunhado. Percebeu que não queria falar com ninguém naquele momento. E nem que quisesse, não havia sinal pra ligar pra ninguém.
Ele podia sair correndo, dando risada como um louco e fugindo como desse dos canivetes, que agora caiam com tanta força que começavam a perfurar a lataria do carro.
Podia procurar uma igreja, havia tantas, com certeza encontraria alguma ali perto. Mas ele nunca tinha sido religioso e, colocando-se no lugar de Deus, se ele existisse mesmo, não daria bola pra um sujeito que só acreditava nele na última hora.
Pensou em pular no rio Tietê, dar uma nadadinha, improvisar um borboleta, como fazia quando era garoto pra impressionar as meninas, mas percebeu que aquilo seria mais mortal do que ficar deitado no chão com a chuva de canivetes.
Podia também fechar os olhos e esperar. O que, convenhamos, não teria a menor graça.
A cabeça estava a mil e demorou um tempo pra que ele percebesse que a chuva de canivetes havia parado. Olhou para o céu e viu que estava negro e cheio de estrelas, saiu do carro louco de felicidade, subiu no capô e gritou pra comemorar a vida. A partir daquele momento ele ia cuidar melhor da família se a família ainda existisse, ia diminuir o ritmo de trabalho, beber menos, parar de fumar, ia até fazer exercícios e trocar o açúcar por adoçante, isso ele prometia, prometia com uma fé que nunca havia tido, pra Deus, pra esposa que talvez estivesse viva, pra ele mesmo, prometia até para os canivetes.
Foi nesse auge de extrema alegria que “PUF”
O mundo explodiu.

"Você me abre seus braços e a gente faz um país"

11 de abril de 2010

Cinquenta e quatro dias, foi o tempo que demorou pra que a ficha caísse.
Não chorei no avião voltando pra casa,
não chorei quando vi minha família,
não chorei quando voltei pra Rio Preto e tive um tempo sozinha pra pensar,
não chorei quando fui pra faculdade,
não chorei contando as histórias de Santiago, repetidas vezes, pra milhares de pessoas.
Não chorei nem olhando as fotos.

Chorei hoje.

Hoje, quando pessoas que conheci lá, e que vieram conhecer a cidade, foram embora.
Hoje, quando meu amigo italiano me abraçou e disse "Hasta pronto", e senti pela primeira vez que provavelmente o "pronto" não será tão "pronto" assim...talvez nunca exista. E, se existir, existirá mais uma vez, ou duas.

Ele me abraçou, entrou no carro. Eu virei de costas e fui andando. Pra minha casa. Não olhei pra trás, não acenei, e senti um nó na garganta que nem meu último dia em Santiago me deu.
Meu amigo é a representação de tudo o que eu vivi e não vivo mais.
É a representação dos melhores meses da minha vida.
É a representação da fugacidade do tempo e da minha mania besta de olhar pras pessoas como se fosse a última vez.
Talvez, dessa vez, seja mesmo.