Vereda da Salvação

13 de dezembro de 2012

Hoje acordei com os pés virados para a cabeceira da cama.
Sonambulismos à parte, não demorou muito pra que eu percebesse que não era só o corpo que estava de cabeça pra baixo.
Ontem, apresentei pela última vez a primeira peça da minha vida. Diante de uma plateia lotada e receptiva, compartilhamos nosso trabalho de meses, um texto pesado de Jorge Andrade, na esperança de que todos saíssem, no mínimo, tocados com o que tinham visto.

Lembro bem de que, no começo do semestre, todos se preocupavam em não transparecer que essa era a nossa primeira peça. Ontem, descobri que isso já não importava. Percebi que um grupo unido como o nosso não precisa se preocupar com esse tipo de coisa, que quem dá o seu melhor consegue coisas impressionantes.

Nós conseguimos coisas impressionantes.
Sempre gostei de teatro, mas faz pouco tempo que descobri que o que é mostrado à plateia é resultado de um trabalho monstruoso. Se você não é de teatro e sabia que as apresentações exigiam muito trabalho, pasme, elas exigem muito mais trabalho do que você imagina.

Lidamos com egos, problemas pessoais, opiniões contrárias. Escolhemos um texto denso e difícil de decorar, lidamos com o medo de entrar no palco e a vontade de mostrar tudo que aprendemos ao longo desses meses, isso sem pensar no trabalho que dá cuidar da parte técnica, do figurino, da iluminação, da trilha sonora e da montagem de palco.


Foi bom ver que, no fim das contas, todos esses meses de dedicação renderam um trabalho lindo e digno do texto escolhido. Talvez nem todos da plateia tenham gostado da peça em si, principalmente pelo tema que ela aborda, mas tenho certeza de que todos perceberam o quanto cada um se entregou ao papel que representava.


E que delícia isso!

E que delícia ouvir os aplausos!


Hoje, parece que meu coração saiu pra dar uma volta e deixou um vazio esquisito aqui dentro. É estranho não ir ao teatro, não entrar no camarim, não me besuntar inteira com pancake pra ficar com a cor da "Gabriéééla". É estranho demais saber que o momento tão sonhado de entrar no palco já veio e já passou, e que esse grupo tão unido e engraçado pode não ser o mesmo no próximo semestre. Mesmo que o grupo seja o mesmo, tudo será diferente.

Passou.

E isso não me deixa triste, só me deixa, sei lá, vazia.
Quando a plateia se levantou e bateu palma, na última sessão, senti como se tivesse percorrido um caminho longo e sinuoso, escuro em alguns momentos, mas que finalmente se iluminava e chegava ao fim. Era a nossa Vereda da Salvação. Um caminho alumiado de estrelas, onde os anjos passa voando, e é nele que a gente sobe para o paraíso.

Ontem, encontrei o paraíso ao lado de pessoas que amo muito e que, mesmo longe, vou continuar amando.
Obrigada a todos que, em maior ou menor proporção, ajudaram para que esse processo fosse bem sucedido.
E me desculpem o tom emotivo, mas é que, parafraseando Drummond, esse vazio depois de tanto trabalho e essa mescla de alegria com tristeza "deixam a gente comovido como o diabo".

O Tablet

22 de novembro de 2012


Sou eu que vou seguir você
Do primeiro rabisco
Até o Angry Birds.
E todos os arquivos
que baixar, eu vou salvar.
A casa, a montanha,
Pode pintar, sem medo.
Tudo isso com um toque do dedo...

Sou eu que vou ser seu colega
Seus problemas ajudar a resolver
Usar a Wikipédia nas provas bimestrais,
Sem ninguém ver
Serei, de você, confidente discreto
É só pôr uma senha de acesso...

Sou eu que vou ser seu amigo
Vou mostrar matérias da Capricho
Se você quiser
Quando surgirem
Seus primeiros raios de mulher
A vida, sem dúvida terá
Reviravoltas fenomenais,
E você vai postar isso nas redes sociais...

O que está escrito em mim
Ficará sempre guardado
Se lhe dá prazer
É só salvar tudo na nuvem
Você vai ver...

Só peço, à você
O favor de não ser cruel
E não me esquecer
Como se eu fosse de papel

Convite

12 de novembro de 2012

Gosto de me sentar em uma das primeiras fileiras e esperar, ansiosa, pela breve escuridão que fará com que eu me esqueça do mundo lá fora.
Gosto de chorar, ou rir, ou os dois, de sentir a emoção de cada movimento e palavra dita, de abrir minha cabeça e não duvidar de nada que vejo.
Gosto da coragem de quem se expõe.
Gosto de assistir, obviamente com os olhos, mas também com o nariz, os ouvidos e as mãos.
Gosto da proximidade com os atores, do silêncio entre a cena final e os aplausos, gosto de aplaudir de pé e, principalmente, de permanecer em silêncio após o espetáculo para que a leveza, a calma e o sorriso permaneçam também por mais tempo.
Gosto, enfim, de notar, quando as luzes se acendem e os aplausos se elevam e os atores sorriem e a plateia se emociona, que tudo é possível, e que a vida pode ser linda e simples, mesmo que apenas dentro das paredes do teatro.
E por tanto gostar dessa mágica, optei por inverter os papéis, por provar também o gostinho de estar no palco e sentir a plateia, pela chance de tentar fazer com que os outros se esqueçam do mundo e sintam que o que veem é verdade, mesmo que deixe de ser assim que as luzes se acenderem.

E é com muito orgulho que hoje, um ano depois de iniciar essa empreitada, posso dizer que espero sua ilustre presença na plateia do Teatro Escola Macunaíma, nos dias 10, 11 e 12 de dezembro, quando apresentaremos Vereda da Salvação, de Jorge Andrade.
É, acima de tudo, um convite à emoção, ao conhecimento de uma nova realidade, à mágica do teatro, e, mais especificamente, ao drama da pobreza, do fanatismo religioso e da busca pela salvação.
Reserve a data, a cadeira e prepare o coração.

O espetáculo já vai começar.


(Para mais informações, favor entrar em contato via face ou via comentários no blog)

A man and the blues

18 de outubro de 2012

Entrou em casa, tirou os sapatos, ligou um blues e se sentou no chão da sala.
Mandou às favas o fato de que não fumava havia anos, vasculhou a gaveta do armário e ali encontrou um Marlboro que nem sabia por que guardava.
Aquele blues pedia um cigarro, e o corpo, vazio de tudo, pedia alguma coisa.
Decidiu que aquela "alguma coisa" era fumaça e deu o primeiro trago.
Sentir-se vazio era estranho.
Não estava triste. Não estava alegre. Não estava nada.
E o nada, profundo daquele jeito, o angustiava mais que tudo.
A fumaça entrava e saía de seu corpo, enevoando o ambiente e deixando, de fato, alguma coisa dentro dele, mas não exatamente o que ele queria.
Abriu então um uísque que havia ganhado de um amigo anos antes. Caubói.
Aquele blues pedia um uísque, e seu corpo precisava de mais que fumaça.
Os acordes lhe enchiam os ouvidos, e a voz do cantor, tão rouca quanto sua guitarra, lhe enchiam a cabeça.
Pensava em tudo que havia acontecido, nos momentos alegres e tristes. Lembrava-se das histórias, não como se as tivesse vivido, mas como se as tivesse escutado da boca de outra pessoa.
Analisava cada momento da vida a dois como se fosse uma terceira pessoa que nada tinha a ver com as brigas e reconciliações constantes.
Não sentia nada.
Começou a mexer os pés acompanhando o ritmo e, quando viu, já dançava sozinho na sala.
Olhos fechados, meio sorriso no rosto.
Deixou que uma sensação boa tomasse conta dele, da sala, do mundo todo.
Uma sensação sem nome. Estava cansado de ter que definir tudo.
Sentiu que o corpo se elevava a cada trago, crescia a cada nota. Dançava como se fosse recheado de música e nada mais existisse. Sorria sem motivo e, ao pensar nisso, sorria mais ainda.
No auge de sua completude, de olhos fechados e peito aberto, sentiu uma dor intensa nos dedos da mão.
Voltou instantaneamente ao chão.
Havia se queimado com o cigarro.
Jogou a bituca no lixo da cozinha e, quando voltou à sala, a música também chegava ao fim. Ficou parado, esperando os acordes finais.
Sol com sétima, fá com sétima, dó com sétima.

Dó.

Silêncio.

Olhando para o nada, pôs o copo sobre a mesa, desligou o rádio, apagou as luzes e foi para o quarto, sozinho pela primeira vez em anos, jurando para si mesmo que, nem naquele momento, nem nunca, deixaria que sua vida terminasse como a música.

Your song

14 de outubro de 2012

Poderia dizer que é o sorriso que não consigo segurar quando te vejo, a vontade de te fazer surpresas, a alegria ao perceber que você faz de tudo pra me agradar, sua cara engraçadinha quando eu digo que estou com fome e não sei o que quero, mas quero algo leve. Poderia dizer que é a paz de deitar de conchinha e a risada que seguro quando você mal diz que vai virar pro outro lado e já começa a roncar, os minutos antes de levantar que fico observando você dormir, ou que é acordar ouvindo música. Poderia falar que é a lembrança do dia que a gente cozinhou junto, as pintas que te dei, as noites românticas assistindo séries de zumbis. Poderia dizer que são as milhares de vezes que me sentei em frente ao computador com a intenção de te escrever e não consegui, porque qualquer coisa que eu escrevesse seria pouco.
Mas é a falta, eu acho, que resume tudo.
A sensação de que nada tem muita graça quando você não está comigo.
É sentir que amo, pela primeira vez, não só com o coração, mas com o corpo todo.
E que minha maior felicidade é te fazer feliz.
Por isso queria te dar um presente. Assim, sem data especial nem nada.
Pensei, pensei e decidi fazer esse texto.
É simples, eu sei, mas pra quê complicar, se nosso namoro não tem nada de complicado?
Espero que você não se importe que eu tenha colocado em palavras
Como o mundo é maravilhoso quando você está por perto.
E que você tem os olhos mais doces que já vi.
Te adoro.

Ferida

27 de setembro de 2012

Quando menos esperava, a ferida se abriu.
Dolorida, fétida e incrivelmente profunda.
Revelou-se diante de todos, sangrando sob o curativo aparentemente limpo.
A princípio, olhou pasmo enquanto ela sangrava e extravasava pus, para depois, passado o susto, tentar fechá-la novamente. Cada palavra doce ardia como álcool e cada tentativa de limpeza como provocação. Empapava de sangue panos e mais panos. A dor era tanta que cogitou arrancar de uma vez o membro ferido, tirar a parte que doía, ir pelo caminho mais fácil, por mais que isso lhe custasse uma parte do corpo que, se não vital, era fundamental em suas ações.
Optou por esperar. Manteve a ferida aberta e exposta para que dela saísse tudo de ruim que havia no corpo. Quando sentiu que já era suficiente, limpou-a cuidadosamente com iodo. Sem anestesia, costurou-a. A dor insuportável lhe deu a sensação de cura. Cobriu-a com uma gaze limpa e a fechou, agarrando-se, inseguro, à esperança de que ela nunca voltasse a se abrir.

Palavrão

28 de agosto de 2012

Era o primeiro dia das férias escolares e levava os três filhos para a casa da irmã, onde poderiam brincar com as primas de idade próxima. Pensava nas compras que tinha que fazer naquele dia, na correria pra chegar a tempo no trabalho, na alegria de ter três filhos inteligentes que eram elogiados pelas professoras, no marido que voltaria do Rio de Janeiro naquele dia.
A filha mais velha estava aprendendo a ler, o filho do meio estava na fase dos "porquês" e o pequeno repetia tudo que ouvia.
Virando na rua da casa da irmã havia uma escola com paredes pichadas. A filha olhou para o muro e perguntou:
- Mãe, o que é buceta?
Brecou de susto.
- O que é isso, menina?
- Não sei, ué, tava escrito no muro.
- Buceta, buceta, buceta.
- Não repete essa palavra não, menino! Ah... Ah, bom... É... Então, isso é palavrão, é um nome feio para o que as meninas têm no meio das pernas.
- O joelho?
- Não, a... A periquita.
- Periquita, periquita, periquita!
- Deixa de ser bobo, menino, para com isso.
- Mãe, por que chamam a periquita de nome feio?
- Ah, então, filho, porque tem muita gente sem educação no mundo.
- Por que?
- Porque os pais não deram educação.
- Eu posso pichar periquita em vez de buceta?
- Você não pode pichar nada!
- Por que?
- Porque pichar já é falta de educação.
- Ah...
- Periquita, periquita, periquta.
- Para com isso, menino! Já falei que não é pra ficar falando isso!
- Mas por que você falou então?
- Eu não falei!
- Falou sim...
- Ah, chegamos! Oh, comportem-se! Eu volto pra buscar vocês à noite. Tchau, filha, tchau, filho. Tchau, filho, dá beijo na mamãe. Filha, o que você vai dizer pra tia?
- Que amanhã é para as meninas irem lá em casa.
- Isso. Filho, e você?
- Que você vai fazer bolo.
- Isso, e você, filho? Filho?
Mas o caçula já havia descido do carro e corrido para dentro da casa da tia gritando a plenos pulmões:
- Buceta, buceta, buceta.

Carta aberta à minha mãe

20 de agosto de 2012

Sempre tive dificuldades de falar sobre a minha mãe.
E não pelo fato de ela ser uma pessoa difícil, extremamente inteligente ou pegar as coisas no ar.
Também por isso.
O principal motivo é que eu não saberia falar dela sem ser injusta, em algum momento, comigo ou com ela.
Minha mãe é uma fofa. Sempre foi.
Passada aquela fase em que a criança precisa da mãe pra tudo, no entanto, eu me afastei.
Afinal, todo mundo dizia que não era bom ter a mãe sempre por perto, que mães não entendem nada da vida moderna, são velhas.
Nenhuma menina tinha interesses por meninos na época, só eu, e isso ela jamais entenderia. Ou pior, entenderia, falaria que não era amor verdadeiro e tiraria sarro. Só porque eu tinha 7 anos. Ser ridicularizada pela mãe era mais do que eu podia aguentar aos 7 anos.
Nessa toada de achar que ela jamais entenderia meus dilemas adolescentes, fui me afastando cada vez mais.
Ela, pelo contrário, continuava ali presente.
Com o passar dos anos criei uma barreira das grandes. Com 15 anos achava que ela nunca me entenderia, não aceitaria meu jeito, não falaria comigo sobre coisas que a envergonhassem e que a culpa disso era toda dela.
Na cabeça dela, acho, eu era uma menina fechada demais que não contava nada pra mãe.
Como toda adolescente guiada pela sabedoria ampla dos amigos, também adolescentes, eu me ferrei.
Me meti em situações difíceis, dolorosas, complicadas e ridículas. O que não teria acontecido com um direcionamento correto.
Mesmo assim, ela estava lá quando eu fazia bobagem e me machucava. Ela cuidava das feridas.
Quando enfim cresci um pouco e percebi que minha vida seria melhor com um bom direcionamento, decidi contar tudo a ela. Tudo mesmo.
Durante anos, parei de ter problemas. O pouco que eu batia de frente com ela não afetava em nada nossa relação e proximidade. Ela sabia, eu aprendia. Pronto.
Então eu fui pra faculdade, ampliei minha visão de mundo, conheci gente, lugares, gostos e adquiri sabedoria suficiente para saber que eu ainda tinha muito o que aprender.
Nessa fase longe de casa fiz coisas que minha mãe não gostaria que eu fizesse, mas que eu queria muito fazer. Nada ilegal ou que me fizesse mal, apenas errado na maneira dela de pensar.
Ainda assim, eu voltava pra casa e contava tudo, queria conversar... Foi quando comecei a notar que ela já não recebia as notícias como antes.
Começamos a bater mais de frente pelas mais diversas situações, até que abri o jogo sobre uma situação que ela não aceitava e que, pior, não tinha motivos ou argumentos para não aceitar.
Foi quando as coisas desmoronaram.
Passei a adolescência achando que minha mãe não sabia de nada, até constatar que ela sabia de tudo.
Então, anos depois, percebi que ela sabia sim de muita coisa, mas estava longe de ser a dona da verdade.
Eu sei que é meio injusto esperar isso de alguém, mas pra mim foi duro. Queria que ela enxergasse o que estava ali estampado na cara dela.
Brigamos.
Desde a nossa última briga mais feia, uns 2 anos atrás, tenho medido o que contar a ela.
Nossa relação voltou a ser tranquila, aparentemente não temos qualquer problema.
Mas o problema é esse, a aparência. Por dentro ainda me borbulhava a vontade de fazer com que ela aceitasse algo que pra mim era normal e que, pra ela, era extremamente anormal, errado e sujo.
Parei de machucar minha mãe com as minhas verdades pra que ela também parasse de me machucar com as dela.
Desde então, como disse no começo, tem sido difícil falar da pessoa que mais amo no mundo.
E, poxa, como sinto saudade dela.
Quando as pessoas perguntam como é a minha mãe, eu sempre digo que ela é fofa.
Mas ela é mais que isso, eu sempre soube que era, só não sabia definir.
Então pra não ser injusta com ela ou comigo, não definia.

Sabe o que eu mais gosto na vida? Nas horas em que a gente está perdido as respostas surgem dos lugares mais improváveis.
Ontem eu estava na fila do cinema com o meu irmão e o meu namorado.
Uma menininha de uns 4 anos puxou minha blusa e perguntou, "Onde está a minha mãe?"
Eu disse que não sabia e perguntei como era a mãe dela.
Ela então respondeu: "Minha mãe é grandona assim e me faz carinho quando eu me machuco".
Nisso, a mãe dela a viu e a chamou e eu fiquei lá, com cara de tacho.
A menina não disse que a mãe dela era perfeita, não descreveu a cor dos cabelos ou da pele, não apontou defeitos, não disse se era magra ou gorda. Ela descreveu o que a mãe dela tinha de mais marcante e lindo.
O tamanho e a atitude.
Foi quando eu vi que era a descrição perfeita da minha mãe, uma mulher grandona o suficiente para me proteger e me fazer carinho quando me machuco.
Imperfeita sim, mas linda em todos os sentidos.
E surgiu uma vontade imensa de dizer a ela que minha atitude violenta se deu ao fato de eu não acreditar que uma pessoa especial e inteligente como ela poderia achar errado algo tão natural. Quis dizer a ela que eu estava errada, não em achar natural, mas em ser violenta com quem sempre meu deu só carinho.
Quis dizer que eu posso não ser grande como ela, mas que meus braços também são confortáveis e que eu também posso fazer carinho quando ela se machucar.
Quis dizer, enfim, que exigir a perfeição foi algo estúpido, e que me esquecer de que ela era perfeita em tudo que podia foi mais estúpido ainda.
E que eu te amo.
Apesar de toda a complicação, é simples assim.



"Um amor puro... Não sabe a força que tem"

Deus abençoe

26 de julho de 2012

    Então, menina, ele entrou no salão pra cortar o cabelo e começou a contar da chefe. Que a moça era muito inteligente, muito estudada, mas era sem-vergonha. Ficava dando em cima, mesmo sabendo que ele era casado. Aí perguntei o que ela fazia e ele disse que ela aparecia com um decotão, ficava encostando nele o tempo todo e dizendo que a mulher dele tinha muita sorte.
Esses papos de biscate.
Aí, você não acredita, ele disse que decidiu colocar o cargo a disposição do diretor da empresa, falou pro patrão que ou tiravam ela, ou tiravam ele.
O que o diretor fez? Tirou a mulher! Tem que ter muita coragem, né?
Ele disse que amava a esposa e só isso que importava. E tem que ter muito amor, claro. Só o amor vence, só o amor de verdade prevalece. Acho tão bonito isso. Deus abençoe. É tão raro, hoje em dia, encontrar um homem que respeita a esposa.
Ele é especial. A tal da chefe tem razão numa coisa, a mulher dele tem sorte mesmo. Muita sorte. Aliás, só isso, por que não sei mais o que ele viu naquela lá. Songa monga que só, magrela, nariguda.
Vai entender.
Tanta mulher mais interessante e solteira, né?
Eu aqui sem ninguém e aquela mané com um cara tão boa pinta. Mas espera só até ele voltar no salão. Se aquela boba chamou a atenção dele, imagina o que eu posso fazer, né?
É só jogar meu charme e o gato tá no papo.
Ah, olha, o trem tá chegando. Te ligo de novo mais tarde pra perguntar da Carminha e da Nina, não vi o capítulo de ontem porque tava no culto. Tá, tá bom, fica com Deus. Beijão.

Certidão

4 de julho de 2012

Declaro que no dia 28 de maio de 1988, no hospital de Birigui - SP, nasceu Marina Cury Reis, branca, sexo feminino, corinthiana. Filha de Gilmar dos Reis, chamado "Gilmar" em homenagem ao famoso goleiro que tantas bolas defendeu milagrosamente pelo Timão, e de Elizabeth de Fátima Cury Reis, brasileira, dentista, corinthiana, sofredora e maloqueira sim senhor.
A menina nasceu com 50 centímetros, 2,5kg de corpo e 3Kg de cabelo.
Nasceu chorando os bofes. Prova, segundo o avô paterno, Pedro dos Reis, de que seria boa sofredora.
Declaro que todos os exames básicos foram realizados ainda no hospital.
Pelos exames, notou-se que a menina apresenta o coração mais forte que o normal.
O que é normal, no caso dos corinthianos.
Toda a família esteve presente para recepcioná-la portando faixas de incentivo nas quais se lia "Jogai por Nós" e "Família CURYnthians" e entoando o Hino Nacional. Segundo um dos primos, Rodrigo Cury Machi, a ideia era que ela já saísse do hospital sabendo cantar a primeira frase do hino: "Salve o Corinthians".
Diante de protestos de torcedores de outros times, que declaravam achar o cúmulo tantas pessoas pressionarem uma recém-nascida para que ela se tornasse sofredora, os padrinhos, Givaldo dos Reis e Silmara Cury Trevisan declararam que não estavam forçando nada, que ela já havia nascido daquela forma, que qualquer sofrimento valeria a alegria da vitória e que não, palmeirenses e santistas nunca entenderiam.
Referiram-se apenas aos palmeirenses e santistas porque o São Paulo havia empatado com o time do Botafogo naquele mesmo dia e não havia torcedores presentes ou ausentes, visto que sãopaulinos só são sãopaulinos quando vencem.
Quando, em tom de chacota, o único tio palmeirense, João Carlos Trevisan, questionou sobre a Taça Libertadores, a menina começou a chorar. O choro foi interpretado como desespero, pelo torcedor do palestra, e como alegria e emoção, por todo o resto da família.
Declaro apenas, diante disso, que o coração dela é forte o suficiente para suportar tanto a derrota quanto a vitória.

O referido é verdade e dou fé, muita fé, fé sempre!

O oficial de registro civil.

Nosocomefobia

25 de maio de 2012


Tem gente que demora décadas para descobrir coisas simples.
“Sou gay”, “Tenho medo de avião”, e “A vovó Mafalda era homem”, por exemplo, são só algumas dessas coisas.
Ontem, eu descobri que tenho medo de hospital.
Eu sou homeopata.
Não, isso não é feitiçaria. Nem tecnologia. É só um método de tratamento mais natural.
As "bolinhas de açúcar", como os céticos carinhosamente chamam os nossos remédios, estimulam o corpo a reagir, o que pode demorar um pouco.
Não é placebo. É um método que funciona perfeitamente.
Tão perfeitamente que não, eu nunca tinha entrado em um hospital como paciente.
Mas ontem, quando acordei, pus o pé no chão e senti um arrepio que percorreu meu corpo umas vinte vezes, deu sinais ao meu cérebro de que tinha algo muito errado com o meu pé esquerdo e que esse "algo muito errado" deveria ser interpretado como "dor lancinante". Tudo isso em meio segundo.
Gritei, sentei na cama, respirei fundo. Removi a poeira do cérebro e tentei me lembrar do que poderia ter gerado aquilo.
Lembrei.
O pé não estava inchado, não estava roxo, não estava nada além de dolorido pra burro.
Demorei meia hora para chegar ao trabalho. Um caminho que normalmente faço em cinco minutos.
Passei a tarde tentando trabalhar e ouvindo histórias de gente que quebrou partes do corpo e só foi saber que tinha quebrado semanas depois, de ossos que se esmigalharam, mas não causaram qualquer inchaço, de gente que morreu dormindo porque tinha quebrado o pé e ficou sangrando por dentro e a pessoa não viu e blá blá blá.
Eu sei, não faz o menor sentido, mas entrei em pânico.
O namorado então sugeriu que eu tirasse um raio X. Ele, todo lindo, carinhoso e gripado, me levou até a emergência de um hospital.
Foi quando começou o pesadelo.
O primeiro enfermeiro, quando me viu mancando, perguntou se eu queria uma cadeira de rodas para ir até a sala de espera.
Meu primeiro impulso foi dizer que não, claro que não, eu não queria a cadeira, moço, pelamordedeus, eu pretendia sair dali andando e sem gesso, pronta pra bater uma bolinha!
Mas respondi simplesmente “Não, obrigada“ e continuei mancando.
Quando chegamos à sala de espera, estava lotada. Só havia uma cadeira vaga bem ao lado de um cesto com uma placa na qual amigavelmente se lia “Lixo Intoxicante”.
Eu não estava aguentando parar em pé, então me sentei meio de lado, o mais longe que eu poderia ficar do lixo sem encostar no velhinho do meu outro lado, que estava tossindo os bofes.
O cheiro da sala me incomodava.
As pessoas com cara de doente me incomodavam.
A sala lotada me incomodava.
E, pra piorar, tava passando Malhação na TV.
Comecei a sentir calor, parecia que as paredes estavam se fechando, o ar começou a faltar, tudo começou a ficar escuro e então...
Chamaram meu nome.
Manquei o mais rápido que pude pra fora de lá e entrei na sala do ortopedista.
Ele então perguntou o que tinha acontecido.
Eu expliquei que o meu peito do pé tinha batido no joelho de um cara na noite anterior.
Ele disse, "Ah, então você chutou o cara?"
Eu disse que podia explicar.
Ele disse que duvidava.
Então expliquei que durante o treino de muay thai, na noite anterior, havia dado um chute para acertar a coxa do adversário. Ele levantou a perna para defender o golpe. Errei o chute e acertei o joelho do menino, em vez da coxa. Na hora, com o corpo quente, só senti um pouco de dor. Quando o corpo esfriou, já viu, né?!
Ele me examinou rapidamente, falou que ia pedir um raio X e que era para eu me controlar e não chutar o joelho do rapaz da radiologia, que era meio mala.
Para fazer o bendito raio X andei por todo o hospital. Passei por grutas, abóbadas, elevadores, salas de espera, cafés, salões de festa. Cada ala do hospital parecia um portal para realidades paralelas. Cada realidade me fazia suar frio.
Com o exame em mãos, voltei para a sala da ortopedia.
Tentei voltar, na verdade. Acabei me perdendo e fui parar na ala da maternidade, no terceiro andar.
Quando finalmente encontrei a sala do médico, entrei, sentei e olhei apreensiva enquanto ele examinava o raio X contra a luz.
“Olha, apesar da dor, seu pé tá inteirinho. Pelo menos o osso. Pode ser que haja um sangramento interno no osso (!!), mas isso é o de menos. Coloque gelo. Vai inchar, mas em cinco dias você já deve estar bem. Se não estiver, volte. ”
“É isso?”
“É, é isso. Boa noite.”
Saí de lá na maior felicidade. Quanto mais me aproximava da saída, mais meus pulmões se enchiam de ar e meu coração batia com vida.
Chegando à sala de espera chamei o namorado e saímos eu e ele, mancando e tossindo, respectivamente, para não voltar tão cedo.

Lembra se puder

16 de abril de 2012

Tem coisas que a gente não quer ouvir.
Tem coisas que a gente não tem coragem de falar.
Lembrei, dia desses, daquela tarde quente.
Poucos dias antes, eu tinha recebido a notícia mais esperada do ano.
O resultado do vestibular.
Com a notícia alegre veio um fato doloroso e inevitável.
Eu ia me mudar. Pra longe.
Abria-se, diante de mim, uma estrada nova e luminosa. Dependia apenas de mim mesma andar por ela e ir a algum lugar que valesse a pena.
Eu ia. Você sabe que eu ia.
Por mais que eu te amasse, eu ia seguir em frente e lutar por... Na época eu nem sabia por que ia lutar, mas sabia que lutaria e daria meu melhor para chegar longe.
Eu sempre fui durona, você sabe disso.
Um dia antes de eu ir embora aconteceu, então, o que eu não queria que acontecesse.
A gente foi até aquele lugar de sempre.
Talvez por não saber como falar, você pediu que eu ouvisse aquela música e prestasse atenção na letra.
Ato de covardia, pensei eu, na hora.
Ato poético, penso eu, agora.
De qualquer forma, fiquei algum tempo sem conseguir lidar com a música que você usou pra terminar o que a gente tinha e que era tão bonito, tão importante pra mim.
Tem coisas que a gente não quer ouvir.
Mas nos obrigam.
Tem coisas que a gente não tem coragem de falar.
Mas, com o passar dos anos, consegue.
Queria dizer que sua música virou minha. Que, hoje, eu conheço o medo de ir embora e sinto na espinha o frio de gritar pro mundo e saber que o mundo não presta atenção.
Queria dizer, enfim, que o futuro agarrou, de fato, a minha mão.
E não soltou até agora.
Anos se passaram até que eu pudesse lembrar disso sem me sentir mal.
A lembrança agora, como eu mencionei antes, ganhou seu toque poético.
No fim das contas, você, usando a letra de Oswaldo Montenegro, tinha razão.
Embora não parecesse, a dor ia passar.
De algum jeito ia passar.


Estrada Nova - Oswaldo Montenegro

Taxi Driver

30 de março de 2012

- Largo Santa Cecília, por favor.
- Centro? A essa hora? Meio perigoso, hein, moça?!
- O senhor acha a madrugada tão perigosa assim?
- São Paulo é perigosa, simples assim.
- Sei.
- Mas a noite é pior.
- Sei.
- Você não vai me assaltar não, né, moça?
- Eu? Você acha que tenho cara de assaltante?
- Isso é só uma pergunta ou um desafio?
- ... Uma pergunta.
- Ah, tá. Ufa, que bom. Não ia me surpreender se fosse um assalto.
- Sério?
- Fui assaltado por uma velhinha e uma criança ontem. A menina ficava chamando a velhinha de vó. "Vó, ele disse isso". "Vó, ela disse aquilo". "Vó, vou pegar a carteira dele". "Vó, fala pra ele não reagir". E a vó mal se mexia, só olhava pra mim com cara de cansada, segurando uma arma maior do que a menina.
- Caraca!
- É, não me estranharia se você me assaltasse.
- Encosta aqui.
- Por que? Eu te levo no Largo.
- Não, aqui fica mais fácil pra mim.
- Tá legal, moça, eu paro, mas não me machuca.
- Que?
- É, por favor, leva o que quiser, só não me machuca.
- Moço, olha pra mim, pode baixar os braços, isso NÃO é um assalto.
- ... Não?
- Não.
- Ufa. Então deu R$15.
- Tá, peraí...

- ... O que você tanto procura nessa bolsa?
- Calma aí, meu, só quero a carteira.
- Tá falando comigo?
- Oi?
- Tá falando comigo?
- ... Desculpa, o que?
- Só tem eu aqui.
- Eu só disse que queria a carteira.
- Ah, eu sabia! Tá aqui a carteira, não me machuca, por favor.
- Mas...
- Você é minha segunda corrida da noite, eu tô liso!
- Mas moço...
- Pega a carteira, eu juro que não dou queixa, eu nem vi o seu rosto direito. Você é ruiva, né? Não! Tá vendo?! Nem vi seu rosto. Por favor, não atira.
- Mas eu não...
- Por favor, eu tenho dois filhos, minha esposa é doente, eu sustento a família e...
- EU NÃO QUERO A SUA CARTEIRA, SÓ QUERO IR PRA CASA.
- Ah... Jura? Ufa, ótimo. Desculpa! A gente fica meio pirado com tanta violência. Olha, moça, você me assustou e eu fiquei com um pouco de dor de cabeça, vamos fazer assim, você não me assalta, eu não cobro a corrida e fica tudo bem. Pode ser?
- Ah... Ok.
- Até mais, então, boa noite.
- Boa noite.
- Ah, moça!
- Sim?
- Cuidado! À noite, as ruas ficam cheias de malucos.

Essa moça tá diferente

17 de março de 2012

Meus pais me ensinaram a ouvir Chico Buarque.
Colocavam no rádio de casa, nas viagens pra Clementina, falavam sobre os livros dele, a obra, o teatro...
Eu cresci achando aquele velho genial e lindo de morrer.
Por isso, quando ele anunciou o show em São Paulo eu não pensei duas vezes, comprei um ingresso.
Comprei sozinha, assim, na lata. A idéia era ir com uma amiga, mas nunca me dei bem com esses sites de venda de ingresso e acabei comprando no dia errado.
Nem liguei.
Tem coisas que prefiro fazer sozinha. Me esgoelar e chorar desesperadamente de emoção são duas delas, e eu sabia que ia acabar fazendo isso.
Eu sabia que o show ia ser bom.
Eu sabia que o mestre era genial.
A única coisa que eu não sabia é que ia ser o melhor show da minha vida.
Eu já vi grandes shows, tanto nacionais quando internacionais. Lembro que comprei, também sozinha, a entrada para o show do Paul McCartney no Rio. Eu não tinha ideia de como iria pro Rio e muito menos de como iria até o Engenhão, mas comprei e fui. Naquela noite, saí do estádio completamente atordoada e com a certeza de que dificilmente alguém faria com que eu me sentisse daquela forma novamente.
Hoje, isso aconteceu.
Aliás, seria bobagem dizer que a sensação foi a mesma. Não foi.
Foi muito melhor.
Hoje, quando Chico Buarque entrou no palco do HSBC Brasil com uma banda maravilhosa, ali, na minha frente, e cantou "O Meu Amor", eu quase tive um enfarte de tanta felicidade.
Acho que só não morri do coração porque queria ver o resto do show.
E a cada música eu me surpreendia mais.
Ele tocou o disco novo e alguns clássicos.
A cada acorde, sentia que minha vida antes era uma melodia incompleta e que eu estava encontrando ali, naquela casa de shows, as notas que me faltavam.
Eu sorri em "Baioque", cantei "Nina", me esgoelei e bati palmas em "Geni e o Zepelim", e quando ele tocou "Teresinha" eu não consegui me segurar. Chorei feito um bebê.
Chorei de emoção, de alegria, de êxtase. Chorei porque percebi, naquele momento, que aquela uma hora e meia ficaria na minha lembrança pra sempre, que falaria sobre aquele dia para meus filhos e netos.
Chorei porque me senti inteira em todos os sentidos.
Chorei porque a música me fez flutuar a tal ponto que nada, absolutamente nada, poderia me fazer pôr os pés de volta no chão.
Nunca mais.
Porque eu nunca mais vou ser a mesma.
Hoje, eu vi Deus de pertinho.

E ele tem lindos olhos azuis.

Mini-Cérbero

14 de março de 2012

"Na mitologia grega, Cérbero era um monstruoso cão de múltiplas cabeças e cobras ao redor do pescoço que guardava a entrada do Hades, o reino subterrâneo dos mortos, deixando as almas entrarem, mas jamais saírem e despedaçando os mortais que por  se aventurassem".


Ok, legal, guarda a informação.

Você tem irmãos?
Isso, irmãos! Aqueles seres que não têm nada a ver com você, mas que todos dizem que são a sua cara.
Bom, eu tenho dois. Três, se for contar minha irmã de criação, a Sandra. Quatro, se for contar com a Biba.
De sangue mesmo tenho dois, o André e o Heitor.
Eles aparecem aqui no blog vez ou outra, normalmente citados como "pirralhos" por um motivo óbvio: é isso que eles são.
Um pirralho de 22 e outro de 20 anos.
Mas vamos começar do começo.
Eu era uma criança feliz e mimada de um ano e oito meses quando minha mãe foi pro hospital e voltou mais magra e com aquele chato nos braços. O chato recebeu o nome de André.
Não, eu não me lembro da chegada dele, mas fotos comprovam a violência com que ele chegou ao mundo para acabar com a minha paz.

André, violento desde tenra idade 

Ele era uma peste. Chorava por tudo! Eu não podia nem encher o menino de beliscões que ele abria o bocão no mundo. Um mala.
E não adiantava reclamar, tudo era culpa minha, ele chorava, a culpa era minha, ele puxava meu cabelo, a culpa era minha, eu rabiscava a cara dele com caneta, a culpa era minha.
Vamos admitir que o mundo não é lá muito justo com os primogênitos.
As coisas eram complicadas, mas dava pra manejar a situação. Quando comecei a ter tudo sob controle, minha mãe saiu, foi pro hospital e voltou novamente mais magra e com outro moleque no colo.
Na minha cabeça, ela trocava gordura por moleques. Uma troca que eu até acharia justa, se não me afetasse diretamente.
Mais um irmão. Mais um pirralho. Bom, é claro que as coisas saíram dos eixos. As atenções, que antes eram minhas e eu tive que aprender a dividir com o André, agora teriam que ser divididas entre os três.
Com a desculpa esfarrapada de que meu irmão mais novo não conseguia nem sentar de tão molenga, meus pais destinavam mais atenção a ele. Eu fiquei lá, jogada às traças, sem meu lugar - antes cativo - no colo do meu pai. 

Eu, após a chegada do pirralho, totalmente deslocada  

Sabe o que é mais complicado dos irmãos? Eles obrigam a gente a dividir as coisas.
A atenção dos meus pais foi a primeira coisa que me obrigaram a compartilhar. Depois veio o quarto, os brinquedos, os doces, o colo da avó...
O tempo foi passando e as coisas só complicaram.
As brigas viraram treinos de luta livre.
Até os dois ficarem maiores do que eu, a coisa funcionava assim: eu batia nos dois, o Heitor batia no André, o André apanhava dos dois e meu pai batia nos três, inclusive no André, pra ele parar de ser besta e reagir.
A gente se gostava, é bom deixar isso claro. Apanhávamos juntos, mas também brincávamos juntos. A gente dividia a atenção, o amor, mas também dividia as tarefas domésticas, dividia o chocolate, mas também dividia a tristeza na hora de comer legumes.
É o tipo de relação que não dá pra ter com amigos, por exemplo.
Os amigos sempre caem fora na hora dos legumes.
Apesar de os três terem saído da mesma barriga as ideias não poderiam ser mais diferentes. Eu virei tradutora, o André, engenheiro químico, e o Heitor, designer, ilustrador, folgado, algo do tipo.
Um gosta de esportes, outro de culinária, outro de séries americanas, é o samba do crioulo doido.
Mesmo assim, a gente se parece muito.
Houve um tempo em que eu ficava brava quando alguém dizia que meus irmãos eram parecidos comigo. Hoje eu sinto um orgulho tremendo disso.
Mais que parecidos, eu diria, somos um só.

Muito bem, era aí que eu queria chegar, volta no Cérbero.
No auge da nossa infância, meados dos anos 90, alguém tirou uma foto de nós três. É uma foto tão bonita e importante que a gente tenta reproduzir todos os anos, com as mesmas posições e feições.
Meu irmãozinho designer decidiu fazer uma ilustração baseada na foto e optou, não por acaso, em nos desenhar como Cérbero.
Não tanto pela monstruosidade ou pela proximidade do bicho com o inferno, acho que mais pelo fato de as três cabeças serem, na verdade, parte de um único ser.

Ma, Toti e Dé
Mini-Cérbero


É o que eu acho né, pode ser que ele estivesse pensando apenas nos portões do submundo.
Fato é que esse Cérbero engraçadinho e inocente, como a gente na foto, mostra um laço lindo.
Na alegria ou na tristeza, no chocolate ou no legume, esses moleques vão ser sempre parte de mim.
Não a parte mais bonita, é claro, mas sem dúvida nenhuma a mais importante.

Quem disse que cabelo não sente?

24 de fevereiro de 2012

Algumas coisas são difíceis de encontrar: trevos de quatro folhas, dinheiro esquecido no bolso da calça, entrevistador do IBOPE...
Já outras são tão difíceis, mas tão difíceis, que quando a gente encontra não abandona nunca.
Uma cabeleireira de confiança, por exemplo.
Dizem que o cabelo é a moldura do rosto. Na boa, todo mundo sabe que um quadro lindo pode ser estragado por uma moldura brega.
O lance é garantir pelo menos a moldura.
Até os 15 anos, eu ia ao cabeleireiro com a minha mãe.
Um dia, uma tia de uma amiga de uma vizinha da minha prima descobriu a Solange, uma moça que tinha um salãozinho em Itatiba.
Minha mãe decidiu conferir e descobriu que a moça era das boas. Durante um ano ela foi a nossa cabeleireira. Eu nunca ia ao salão sozinha e nem mudava o corte "mãe d'água" (como alguns amigos carinhosamente apelidaram quando viram minha foto do RG).
Um dia, no entanto, minha mãe tinha um compromisso e me deixou sozinha no salão, entregue às mãos e às tesouras da Solange.
Não tinha mais nenhuma cliente além de mim. Estávamos eu, ela, a Ju (assistente), e a manicure.
Sentei na cadeira e disse pra tirar 2 dedinhos. Ela pegou as tesouras, colocou umas presilhas no meu cabelo e começou a chorar.
É, não errei na hora de digitar não, ela não começou a cortar, começou a chorar.
Bom, a cortar também, o que me fez entrar em desespero junto com ela.
Ela chorava e cortava dois dedinhos, falava dos problemas pra assistente e repicava meu cabelo, soluçava e cortava mais cinco dedinhos. 
Eu me segurei firme na cadeira na esperança de que aquilo impedisse a ação da tesoura, mas não impediu.
Ela terminou, fez uma escova e foi ao banheiro pra lavar o rosto.
Eu me vi lá, parada, olhando boquiaberta pro espelho.
Meu cabelo estava lindo de morrer.
Depois disso ela me ganhou, é claro.
Lembro que uma vez eu cheguei ao salão com o cabelo preso e disse a ela que tinha vontade cortar curto. Ela perguntou, "Tem certeza?", eu disse que não sabia bem, sabe, talvez, mas que... Então ela pegou a tesoura, cortou fora o rabo-de-cavalo e disse, "Pronto, agora você tem certeza".
Doida?
Sim, doida de pedra!
Mas, pra variar, ela fez um corte incrível.
Com o tempo, a Solange passou a ser minha confidente, a amiga que dava pitaco nos meus namoros, que me receitava shampoos, cremes, roupas, religiões e remédios tarja preta, e o Solange's Fashion Hair virou um lugar pra relaxar e passar engraçadas tardes de sábado.
Faço visitas a ela a cada 3 meses pra dar uma retocada na juba e explico o que quero fazer de uma maneira que só ela, doida que é, consegue entender.
- Como você vai querer?
- Então... Eu gosto desse corte. Quero manter o corte, mas quero que as pessoas percebam que eu cortei o cabelo. Não é pra ficar curto, tá bonito assim, compridão. Dá uma repicada sem repicar muito, entendeu?
- Hum, você quer ficar diferente sem que eu mude o corte, diminua o comprimento ou repique mais, é isso?
- É.
- Deixa comigo!

E não é que ela consegue?

6 de fevereiro de 2012

Soltou um suspiro e se virou de lado, parte inconformada, parte decepcionada.
Não acreditava em como tinha sido ruim.
Como era possível?
Antes da cama, havia química, humor, carinho, atenção, tesão. Amor não, isso nem interessava a ela naquele momento, mas tinha todo o resto.
E agora...
Agora nada.
Horas antes, havia dito a ele - com carinha de safada - que estaria livre naquela noite.
Ele respondeu um "Ah, ok" que poderia ter servido de aviso do que iria acontecer.
Mas ela preferiu fingir que via alguma empolgação nos olhos dele, ali, escondidinha atrás do cansaço e da indiferença. Agora tinha a impressão de que, na tentativa de parecer sensual, tinha se oferecido demais.
Não dava pra saber o que dava mais raiva, se a decepção da experiência ou a insegurança em relação a si mesma.
Em sua cabeça, uma frase de desenho animado ecoava: "Eles vêm, comem e vão embora. Eles vêm, comem e vão embora". Não se lembrava nem do desenho, nem do contexto de onde isso havia saído - assistia muitos desenhos com o sobrinho de dois anos - mas se lembrava de uma formiga repetindo a frase como um mantra, encolhida de pavor.
Eles chegaram na casa dele, beberam uma taça de vinho, meio sem jeito se beijaram e se empurraram até  a cama, atrapalharam-se na hora de tirar as roupas e pá, pá, pá.
Ele gozou e foi correndo pra sala pra atender o telefone que insistentemente tocou durante os cinco minutos de sexo.
Ela ficou lá. Semi-nua e com frio.
Suspirou e se virou de lado. Sentindo que ia chorar se levantou, pôs a roupa e ficou esperando ele voltar da sala.
Ele vem, come e vai embora.
E ela?
Ela fica sozinha.



Inspirado na música Sexo (Zélia Duncan)

Sobre o ano que passou

20 de janeiro de 2012

Eu queria falar sobre o ano que passou.
Ensaiei, pensei, escrevi, apaguei, escrevi de novo, apaguei de novo...
Foi quando percebi que palavras não seriam suficientes pra mostrar o que eu queria.
Então decidi mostrar literalmente.


O ano que passou foi inesquecível porque...







... Porque eu amei intensamente todos os dias.


:)


"Este ano peço ao céu
a saúde do anterior.
Não preciso de dinheiro,
sou rico de amor.
Vou caminhando pela vida.
Sem pausa, mas sem pressa.
Procurando não fazer barulho,
vestido com um sorriso.
Sem complexos nem temores,
canto rumbas coloridas,
E chorar não me machuca
desde que você não chore"
(Melendí)

Bum-das Imobiliárias

16 de janeiro de 2012

Se um dia você estiver se sentindo sozinho, precisando conversar com alguém educado, atencioso e engraçado, esqueça a CVV, esqueça o namorado.
Ligue para um corretor.
É, isso mesmo, de imóveis.
Aliás, nem ligue, mande um e-mail dizendo que está interessado no apartamento X.
Ele vai te ligar de volta com milhares de propostas interessantes, oportunidades imperdíveis e comentários brilhantes.
Duvida?

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- Alô, gostaria de falar com a Senhora Marina.
- É ela.
- Ah, oi, senhora Marina. Posso te chamar de Marina?
- Pode, claro.
- Marina, vi que você se interessou pelo nosso apartamento na Mooca, é isso mesmo?
- Na verdade eu me interessei pelo preço dele, mas queria alguma coisa mais perto do centro.
- Ah, perto do centro é difícil, é tudo velho, tudo feio, tudo caro, só conheço apartamentos nojentos no centro. Onde você mora?
- No centro.
- Ah... Sempre há exceções, eu imagino, eu acho, eu espero, eu... Onde do centro você mora?
- Na Santa Cecília.
- Ah, também! É Santa Cecília, né?! Quase Higienópolis!
- E quase Arouche, quase República.
- Ah, bom, então, a gente só trabalha com Zona Leste. Mas posso garantir que é um bom negócio. Talvez não tão próximo do metrô, não tão próximo de Higienópolis, não tão grande quanto os apartamentos do centro. Ainda assim, um bom negócio.

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- Oi, tudo bem? Meu nome é Marina, queria perguntar a respeito da casa X, na Lapa.
- Ah, essa casa precisa de muita reforma, você está interessada em casas que precisam de reforma?
- Dependendo do preço eu estou sim.
- Bom, essa casa precisa de bastante reforma, tanto na parte externa quanto na fiação e no sistema hidráulico.
- É, eu reparei. Quanto custa?
- Quinhentos.
- Oi?
- Quinhentos.
- Quinhentos mil reais brasileiros?
- Isso.
- ...
- Alô.
- Moça, você me disse que uma casa que precisa de reforma completa custa MEIO MILHÃO DE REAIS?
- É, veja bem, são dois terrenos. A casa tem cem metros quadrados.
- São 5 mil reais por metro quadrado. Numa região de difícil acesso na Lapa.
- Sim, uma oportunidade e tanto não? Você pode derrubar a casa atual e fazer uma nova com o seu estilo.
- ...

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- Alô, Marina?
- Isso.
- Foi você quem demonstrou interesse no nosso apartamento de dois quartos com cozinha, sala pra dois ambientes, varanda, banheiro, vaga de garagem, lazer completo, ao lado do metrô Liberdade, reformado, no valor de 230 mil reais?
- Isso, eu mesma.
- Sinto muito, já foi vendido.

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- Alô, Marina?
- Isso.
- Clariberta Roberta da Imobiliária Mi Casa, Su Casa (Nome obviamente fictício. O da imobiliária.), tudo bem?
- Tudo.
- Vi que você se interessou pelo nosso apartamento de 300 mil na Ponte Rasa e...
- TREZENTOS MIL? NA PONTE RASA? Não, moça, acho que mandei um e-mail de interesse pro apartamento errado. Eu tô procurando alguma coisa mais barata e mais próxima da cidade de São Paulo.
- Bom, tudo bem, o que você está procurando? Talvez eu possa ajudar.
- Apartamento de dois quartos, com vaga, próximo a um metrô, de preferência próximo ao centro, que aceite financiamento e custe menos de 250 mil.
- Ah, só você, né?
- Como?
- Esquece.
- Ah... Como?
- Quer uma dica? Esquece, você não vai encontrar nada, sinto muito. Teve um BUM de preços no último ano, está tudo caro. Pode tirar o cavalinho da chuva.
- Bom, então obrigada.
- Talvez na Baixa Casa Verde. Mas lá alaga.
- Não, moça, agradeço a atenção.
- Nada, boa sorte.

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Sorte.


Ta aí. No fim das contas é disso mesmo que eu vou precisar, já que bom senso está longe de ser uma opção.