O espelho dos meus pais

20 de dezembro de 2016


Perdi as contas de quantas vezes encarei aquele espelho horas a fio. Ele estava na parede do quarto dos meus pais desde sempre. Era robusto, pesado, “de corpo inteiro”, e desde minha infância já tinha a trabalhada moldura de madeira escura bastante desgastada. Aprendi, ainda criança, que espelhos refletem nossa imagem e, por isso, passei a me reconhecer no que via nele quando o encarava. Aquele ser era eu. Não me agradava em nada, mas era eu.
Eu vivia no quarto dos meus pais porque era o maior cômodo da casa, tinha uma cama enorme e eles só entravam ali para dormir. Criava nele esconderijos e passagens secretas, e o usava como cenário para as histórias que inventava, nas quais podia ser Alladin, Mulan, Renato Russo, a Magali da Turma da Mônica, o mocinho, a mocinha, o bandido e o cavalo malvado do bandido. Todos, tudo, menos eu. Mas o espelho continuava ali, desafiando minha imaginação, mostrando que por mais que eu quisesse, não podia ser outra pessoa. Eu era aquilo que via nele. Sem sal, sem açúcar, sem sentido.
Nos anos que se passaram diante daquele espelho, a configuração do quarto permaneceu a mesma. O incômodo que eu sentia quando me via diante dele, no entanto, aumentou progressivamente. Eu, que antes não falava sobre isso por não saber explicar o que incomodava, vi a adolescência ir transformando a imagem à qual tinha me acostumado em outra que não reconhecia e que fazia ainda menos sentido. Um dia, passei pelo espelho e quase morri do coração ao ver ali uma pessoa completamente estranha. Segundos depois, quando me dei conta de que a pessoa era eu, senti um nó se formar em minha garganta e, na tentativa de não sufocar, acabei por soltar o grito que prendi no peito por todos aqueles anos. Chorei. As lágrimas escorriam não só pelos olhos, mas por todos os poros desse novo corpo refletido pelo espelho. Vi aquele rosto se contorcer de desespero, arranquei as roupas que não me cabiam e, vendo refletida a carne nua, senti nojo. Tentei arrancar meus cabelos, meus dentes, a pele, o sexo, tive vontade de morrer, e, num rompante de fúria, arremessei um sapato contra o velho espelho que se espatifou.
Com os olhos fixos na madeira que antes sustentava o vidro e continuava presa à parede, percebi minha respiração voltando ao normal. Aproximei-me da moldura e senti uma dor lancinante no pé. Olhei para baixo e, encarando os cacos amontoados e sujos de sangue, me reconheci, pela primeira vez, naquele ser desconstruído e repleto de olhos mareados, narizes e bochechas rosadas. Tudo aquilo era eu. Já não via ali um homem ou mulher, mas sim o alívio do “não ser”, do incógnito. Com uma leveza que me era estranha, vi todos aqueles fragmentos se contorcerem outra vez para formar, em todas as minhas bocas, o sorriso mais lindo que já dei.

Fluido

24 de novembro de 2016

Não há nada no palco além do chão, das paredes do fundo e das cortinas negras.
O público ouve o terceiro sinal do teatro e, acomodando-se nas poltronas, silencia.
Faz-se um instante de silêncio absoluto.
Dois instantes.
Três.
O silêncio chega a ficar palpável.
No momento em que as pessoas começam a se mexer e se entreolhar, desconfortáveis, uma luz ilumina o canto direito do palco. Surge então, banhado por ela, um garoto com um vestido de balé. Em um primeiro momento, o desconforto volta a surgir. Pessoas se endireitam nas poltronas e algumas trocam risadinhas. O silêncio, no entanto, volta a reinar quando o garoto caminha até o centro do palco, para, e encara a plateia com os olhos mareados.
Ninguém sabe se ele está emocionado ou triste.
Ele une os braços à frente do corpo, junta os calcanhares en dehors e fica assim, parado, até que o piano toca as primeiras notas.
O garoto leva um dos braços sobre cabeça e, mantendo-se em ponta, eleva uma das pernas. Adágio. Sem qualquer esforço aparente, ele impulsiona o corpo e gira como peão.
Ao piano juntam-se violinos.
O garoto continua sozinho.
Seus movimentos ganham um pouco mais de corpo. Plié. Demi-plié. Arabesque. No momento em que ele se estica com delicadeza, violoncelos se juntam ao piano e aos violinos.
O garoto continua sozinho.
Ele gira novamente sobre o próprio eixo. Sempre de olhos abertos. Os olhos sempre mareados. O palco parece diminuir a cada novo movimento do dançarino.
À orquestra junta-se o contrabaixo.
O garoto continua sozinho.
Ele se joga ao chão em um movimento tão fluido quanto a água e tão suave quanto a brisa. Estica os braços em direção ao público como se estivesse sedento de algo que não está ali, que não pertence ao balé. E apesar de a plateia não saber o que é, sabe claramente que o que a bailarina busca está dentro dela mesma, não fora.
Começam a soar os fagotes.
O garoto se estica no chão como se por ele quisesse ser tragado e, girando, ele se aproxima outra vez da lateral direita do palco.
Ouvem-se os oboés.
Apenas os oboés.
No teatro que, segundos antes, estava tomado pela música, apenas o agudo instrumento de sopro parece manter o garoto vivo. Ele se levanta de forma delicadamente brusca e se vira para o centro do palco, totalmente vazio.
Silêncio.
Começam a rufar, aos poucos, os tambores. Primeiro um, depois outro, depois outro. Juntam-se aos tambores todos os outros instrumentos e, num rompante que faz a plateia prender a respiração, o garoto corre, salta e paira no ar como se, naqueles segundos que se fizeram eternos, voasse.
Não há mais ninguém no palco, mas ele não está sozinho. Ele é o garoto, a bailarina, a orquestra, a plateia, o palco. Apenas um. Mas todos. E ninguém ali ousaria dizer o contrário.
Ele se vira, encara a plateia e, ao ouvir a última nota da orquestra, fecha os olhos.
Pelo seu rosto, escorre uma lágrima.

Aplausos.

Reforma

24 de abril de 2016

Eu me lembro até hoje do dia em que fui conhecer o meu apartamento.
Procurava por ele havia meses. Tinha visto muquifos custando fortunas, apartamentos que comportavam três quartos, sala de estar, sala de jantar, escritório, hall, varanda gourmet, dois banheiros e uma areazinha externa em 50m², casas ideais localizadas no fiofó do Judas, enfim, foi um alívio entrar naquele apartamento e perceber que tinha encontrado o meu cantinho.
Tudo era lindo, pintadinho, bem arrumado... Menos o banheiro. O banheiro era um horror. Enorme, mofado, com um piso chapiscado de cinza, azulejos floridos nas paredes, o armário tinha um ninho de baratas aladas e, pra fechar com chave de ouro, a privada e a pia eram roxas. Sério, roxo-beterraba. 
Desde o primeiro dia, eu queria reformar aquele banheiro. Meu sofrimento em relação a ele era físico. Dava até dor de barriga. Ainda bem que a privada, apesar de roxa, funcionava.
Mas como na vida nada é tão fácil, só quase quatro anos após a mudança eu finalmente consegui começar a tão sonhada reforma.
Meu pai foi até o apê pra fazer um projetinho e acabou por perceber que o banheiro era grande o suficiente pra virar dois. Era bom demais. Eu ganharia, além de um banheiro decente, uma suíte.
Que chique!
E de quebra ainda me livraria do lavabo do fundo, que eu não citei aqui antes, mas era bem mequetréfe.
Começaram as obras. Tiraram o armário das baratas e, com ele, a pia beterraba. Que alegria! Dali pra frente, tudo seguiu exatamente como planejado.

Por aproximadamente dois dias.

Aí, quebraram o chão de taco pra abrir a porta da suíte e descobriram que ele estava podre. Não acharia ruim trocar o taco se a casa inteira não fosse de taco. Mas tá podre, né? Fazer o quê? Troca o taco.
Poxa, mas por que ele tá podre? Ah, é por causa da umidade que vem do chão? Ah, é essa umidade que mofa as paredes? Então arruma as paredes, né? Lixa até o tijolo, passa mil produtos anti-mofo, passa impermeabilizante, passa massa e pinta todas as paredes. Todas. E aí troca o gesso, né? Porque essa moldura rococó é do tempo do onça. E essas janelas com persiana de madeira que já foram lar de 5 gerações de cupins? Aproveita e já troca. Já que tá no inferno, abraça o Bolsonaro. Então, aproveita e já transforma o lavabo mequetréfe numa lavanderia. Aí, o que era lavanderia vira cozinha e a cozinha vira copa (Quem disse que não ia ter copa?). E troca os batentes... E as portas... E as soleiras.

Enfim, a reforma ia durar só o mês de dezembro. Mas aí, especificamente em dezembro de 2015, teve aquele lance de natal, ano novo... Não deu. Ia ser entregue antes do carnaval, mas nada funciona antes do carnaval nesse país, né? Esquece. Antes da Páscoa saía com certeza. Só que a Páscoa foi cedo esse ano... Em março, é mole? Bom, o Lu faz aniversário em abril, pelo menos a festinha dele ia ser no apê e... Não, não foi. A próxima previsão é eu poder comemorar o meu aniversário em casa, no fim de maio.
Enquanto isso, vou sonhando com a minha caminha, meu sofazinho, meu Game of Thronezinho, e com a grana que preciso ganhar pra, terminado tudo isso, poder finalmente partir pra decoração, que é a parte massa.

E com os open houses, claro.

Na pior das hipóteses, a gente faz um open house junto com o natal.

Do ano que vem.

Quem sabe?

Sinta-se

2 de fevereiro de 2016


Primeiro escreveu um texto imenso sem pontuação alguma sem espaços ou qualquer sinal de parada porque não havia nada parado ali dentro apenas uma vontade incontrolável de despejar ideias negativas ruins sem nexo mas cheias de sentimento desesperado e vontade de chorar GRITAR e mandar meio mundo à merda. Não. Ninguém pode se encontrar em meio a tanto caos.

Então apagou.

Tentou de novo. Respirou fundo e foi escrevendo o que sentia. Usou pontos finais. Leu tudo depois. Viu. Que. Os. Pontos. Não. Faziam. Sentido. Sentiu-se presa entre pontos finais e sua capacidade invejável de concluir as ideias. Limitar. Os limites são um problema. Os limites são o problema.

Então apagou.

Pegou um espelhinho... Olhou-se e não se viu... Mirou os olhos vazios por horas e sentiu a queimação no estômago. Queria parar. Arrancar a gastrite com a mão. Equilibrar as barras, vírgulas, uma caralhada de travessões que a comprimiam, pontos finais que a restringiam e vontades condenáveis de ser reticente quando tudo que a obrigavam a fazer era ser exata. Seca. Pontual. Queria berrar, essa é que era a verdade. Permitir-se o inadmissível, mergulhar na escuridão na esperança de que, ao não ver mais nada e nem ninguém, conseguisse finalmente se enxergar. Mas não berrou. Não mergulhou. Não se viu. Leu o que tinha escrito e teve medo de expor o que não devia.


Então apagou.