Fluido

24 de novembro de 2016

Não há nada no palco além do chão, das paredes do fundo e das cortinas negras.
O público ouve o terceiro sinal do teatro e, acomodando-se nas poltronas, silencia.
Faz-se um instante de silêncio absoluto.
Dois instantes.
Três.
O silêncio chega a ficar palpável.
No momento em que as pessoas começam a se mexer e se entreolhar, desconfortáveis, uma luz ilumina o canto direito do palco. Surge então, banhado por ela, um garoto com um vestido de balé. Em um primeiro momento, o desconforto volta a surgir. Pessoas se endireitam nas poltronas e algumas trocam risadinhas. O silêncio, no entanto, volta a reinar quando o garoto caminha até o centro do palco, para, e encara a plateia com os olhos mareados.
Ninguém sabe se ele está emocionado ou triste.
Ele une os braços à frente do corpo, junta os calcanhares en dehors e fica assim, parado, até que o piano toca as primeiras notas.
O garoto leva um dos braços sobre cabeça e, mantendo-se em ponta, eleva uma das pernas. Adágio. Sem qualquer esforço aparente, ele impulsiona o corpo e gira como peão.
Ao piano juntam-se violinos.
O garoto continua sozinho.
Seus movimentos ganham um pouco mais de corpo. Plié. Demi-plié. Arabesque. No momento em que ele se estica com delicadeza, violoncelos se juntam ao piano e aos violinos.
O garoto continua sozinho.
Ele gira novamente sobre o próprio eixo. Sempre de olhos abertos. Os olhos sempre mareados. O palco parece diminuir a cada novo movimento do dançarino.
À orquestra junta-se o contrabaixo.
O garoto continua sozinho.
Ele se joga ao chão em um movimento tão fluido quanto a água e tão suave quanto a brisa. Estica os braços em direção ao público como se estivesse sedento de algo que não está ali, que não pertence ao balé. E apesar de a plateia não saber o que é, sabe claramente que o que a bailarina busca está dentro dela mesma, não fora.
Começam a soar os fagotes.
O garoto se estica no chão como se por ele quisesse ser tragado e, girando, ele se aproxima outra vez da lateral direita do palco.
Ouvem-se os oboés.
Apenas os oboés.
No teatro que, segundos antes, estava tomado pela música, apenas o agudo instrumento de sopro parece manter o garoto vivo. Ele se levanta de forma delicadamente brusca e se vira para o centro do palco, totalmente vazio.
Silêncio.
Começam a rufar, aos poucos, os tambores. Primeiro um, depois outro, depois outro. Juntam-se aos tambores todos os outros instrumentos e, num rompante que faz a plateia prender a respiração, o garoto corre, salta e paira no ar como se, naqueles segundos que se fizeram eternos, voasse.
Não há mais ninguém no palco, mas ele não está sozinho. Ele é o garoto, a bailarina, a orquestra, a plateia, o palco. Apenas um. Mas todos. E ninguém ali ousaria dizer o contrário.
Ele se vira, encara a plateia e, ao ouvir a última nota da orquestra, fecha os olhos.
Pelo seu rosto, escorre uma lágrima.

Aplausos.